Provavelmente o filme paradigmático desta lista.
Por várias razões.
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A primeira: por mais que The Man Who Loved Women, Micki + Maude e Skin Deep sejam boas, ou até muito boas, talvez ótimas variações do tema do homem dividido entre duas mulheres, em 10 há uma liberdade (de tom, de construção, de registro, de caracterização, de abordagem narrativa) em relação aos expedientes dessa temática (quem na história do cinema, além do Edwards, pensaria no Brian Dennehy para interpretar o barman/fiel ouvinte/confessor do músico em crise de meia-idade Dudley Moore, ou no Robert Webber para interpretar o amigo gay/igualmente ouvinte/confessor, porém infiel, do mesmo Dudley Moore?) ao mesmo tempo que, antes mesmo de ser um comentário sobre essa temática, a forma é uma reflexão sobre si mesma em função dessa temática, é tema também e sobretudo no sentido musical do termo (o que não surpreende, não pode surpreender em um filme autorreflexivo no qual o protagonista é um músico)…
Enfim, em comparação à liberdade e à coesão formal assombrosa de 10, os filmes subsequentes de Edwards que abordam a temática do homem maduro em crise empalidecem, visto que não têm essa ligação verdadeiramente musical, verdadeiramente estrutural com o tema que Edwards, Moore e Mancini estabeleceram com leveza e força.
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A segunda: não há, e acho que não houve nem antes nem depois, filme hollywoodiano (especificamente hollywoodiano; ou pós-hollywoodiano; ou, como no caso deste, pós-hollywoodiano de um dos últimos grandes autores hollywoodianos) mais próximo da sensibilidade e da capacidade de experimentação multifária com o tempo narrativo (que em um filme cômico não pode ser outra coisa que experimentação com o tempo da comédia) do cinema do Jacques Rozier do que 10. A sensação do tempo; o tempo que passa; o tempo que permanece; o tempo de espera; o tempo à espreita; o tempo, efêmero, da satisfação; aquele, duradouro, da inquietude; e ainda, o tempo contemplativo da observação de todas as peripécias que atravessam os polos antagônicos da insatisfação permanente e da busca pelo arrebatamento.
Tempo eminentemente, exclusivamente musical, do qual o filme não desvia, o qual o filme não trai nem por um segundo.
10 já seria uma obra-prima se contasse apenas com essa dimensão. Há outras.
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A terceira: vários filmes da lista que linkei no início do texto existiram no momento ideal em que as virtualidades, as possibilidades de tal ou tal perfil, tal ou tal figura (de um tipo de ator, de um tipo de obra, de um tipo de aparelho de produção) ainda não haviam se esgotado, ainda encontravam-se prenhes de promessas. Ao longo dos 80, não apenas Edwards aceitou a posição de especialista do filme cômico de crise conjugal e de meia-idade (até Victor/Victoria, sua obra-prima absoluta junto com The Party, é uma variação do tema), ainda que com enorme desenvoltura e criatividade, como Dudley Moore se transformou em uma caricatura monótona da personagem do bêbado estabanado que interpretou aqui e Bo Derek desperdiçou sua espontaneidade, sua presença marcante durante toda a década em subprodutos mambembes da comédia erótica.
A magia de 10 foi fruto de um concurso de elementos felizes que convergiram no átimo da passagem de uma época para outra: Edwards no zênite da sua arte, a disponibilidade de Moore para o papel do protagonista, o frescor de Bo Derek, a beleza desassombrada de Julie Andrews, isso tudo cristalizado em uma síntese do imaginário e dos fantasmas alentados por uma sociedade durante toda uma década, digamos que no espaço entre The Party e 10, entre o final dos anos 1960 e o final dos 1970. Ao mesmo tempo a sensação do que foram os anos 1970 para aqueles que terminaram aquela década entrando na casa dos 40 e a idealização involuntária do que estava se espreitando nos anos 1980.
A beleza de um filme também pode vir disso: daquilo que ele antecipa de um outro imaginário, daquilo que se vislumbra (se imagina) de uma outra (uma nova) época, uma hipótese que logo mais essa época seguinte não apenas não confirma como trai. Como Edwards não confirmou, felizmente sem se trair, nem mesmo nas ocasiões em que voltou ao mesmo terreno de 10 (The Man Who Loved Women, Micki + Maude, Skin Deep).
(Um parêntese: a prestação de Dudley Moore para Edwards, de muito longe a melhor de toda a sua carreira, resume-se basicamente a três registros: bêbado, menos bêbado, quase sóbrio. Moore sempre foi e é aqui também um ator com uma paleta muito reduzida, inclusive para a comédia, que foi seu principal campo; a composição do protagonista de 10 é um triunfo seu mas também, e talvez principalmente, de Edwards, que constrói o filme todo - cadência, arco, jornada, universo ficcional - em função, e não em detrimento, dos limites do seu ator principal.)
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A quarta: o outro dia falei sobre como o pensamento crítico do Rivette pendeu da evidência para o segredo, do segredo para a evidência. O segredo evidente, a evidência secreta: esse equilíbrio permanente, que no caso do Edwards manifesta-se nesse "estado de êxtase flutuante na gravidade zero" de que fala Fred Camper, exige uma arte do fino ajuste que foi, na falta de um termo melhor, chamada de mise en scène por alguém como Rivette (e também pelos mac-mahonianos). Talvez por isso a interlocução de Edwards em 10 seja mais com o Cukor de Rich and Famous e o Aldrich de ...All the Marbles que com todos os outros filmes hollywoodianos feitos nesse mesmo período.
Essa arte do segredo evidente, da evidência secreta talvez exija um nome que vá mais ao ponto, um tão simples e tão direto quanto... ponto de vista. Algo que é pura construção, no sentido de que é proposto, reproposto, decomposto, afrouxado, reforçado, questionado, afirmado, reiterado, contestado e finalmente consumado por toda essa estruturação, em todas as suas complementaridades, em todas as suas variantes, cuja soma (≠ adição) resulta nesse objeto a que chamamos de "filme".
A arte do segredo evidente, da evidência secreta: o fato (o mistério) de que não há um segundo desde o primeiro segundo que aparece na tela em que Julie Andrews não seja infinitamente mais desejável, provocante, sensual e fascinante do que Bo Derek, e que ainda assim seja necessário toda essa sucessão de estruturas, toda essa construção de enganos e autoenganos sucessivos (é o que pode acontecer com um homem que envelhece e não aceita envelhecer), todo esse movimento da personagem de Moore e do filme (proposição, reproposição, decomposição, afrouxamento, insistência no erro, questionamento, projeção, reiteração, contestação e finalmente consumação) que o leva para longe de Andrews até a volta ao ponto de partida, quando finalmente o músico dá ouvidos a alguma coisa que não é a sua própria canção.
A sua própria, e velha, música.
Só então é possível o filme atingir a nota mais alta, mais intensa desse trânsito entre mistério e evidência, evidência e mistério, um trânsito que Edwards correta, natural e genialmente identifica no ato do sexo, e mais especificamente nos últimos gestos de amor antes que os corpos se desnudem de vez.
Corrigi aqui a imagem do último link para os que abriram a postagem por e-mail.