Lido recentemente:
“O que é o cinema burguês? Não é o cinema financiado (todo filme exige um capital), é o cinema que declara seu amor a si mesmo - Spielberg, James Gray, P. T. Anderson, Nakache-Toledano, Thomas Salvador, Louis Garrel. Não há mais caminho, não há mais trabalho (no sentido de ‘trabalho crítico’), não há mais revelação ou revolta. Quer sejam deficientes, negros, judeus, feios, depressivos ou inquietos, os eleitos estão eleitos, é tudo o que aprendemos. L’innocent: título a ser tomado como admissão do contrário. Garrel quer tanto se inocentar que somos forçados a duvidar, não da sua personagem transparente como as águas do seu aquário, mas do que o diretor quer nos dizer. Somos também obrigados a isso porque ele nos coloca no lugar do motorista que contempla, enganado, duas estrelas chorando e rindo enquanto sua carga é roubada. Somos nós as testemunhas desprezíveis de uma declaração de amor a si mesmo, de pessoas que se divertem sendo desonestas”.
Ainda que seja mais um comentário do que uma crítica, é provavelmente o que lerei de melhor do universo da crítica e da cinefilia francesa neste ano (a não ser que o seu autor escreva algo ainda mais agudo nos próximos nove meses).
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Visto recentemente (não traduzirei porque não é necessário, e não transcreverei tudo porque é menos necessário ainda):
“liquid narrative”, “more sensory, that was more like, something as an experience”, “an attack of sounds and images”, “a pop poem”, “it’s about girl empowerement”, “it’s about a new generation”, “it’s a new vision”, “it’s meant to be about surfaces, the culture is about surfaces”, “there’s no right or wrong way to interpret this film or anything that I do, it’s all just perfect”, “they’re gonna’ love this shit, all those Disney fans”.
A mesma ausência de trabalho crítico (“the culture is about surfaces”, logo “it’s meant to be about surfaces”, e no fim das contas “it’s all just perfect”), um outro tipo de cinema burguês (o superautor, isto quer dizer a superconsciência holística da cultura da época, regurgitando toda a sua ideologia, sem o menor freio, porque sem a menor crítica, tanto de si mesmo como dos ilustres jornalistas ao seu redor, sem análise, sem reflexão, sem a menor capacidade de considerar, e muito menos de enxergar, o abismo que o separa dos seus fetiches - os tais fãs da Disney, os gângsteres, os rappers, a juventude lúmpen e white trash que desde Gummo ele cafetinou), uma outra maneira de tratar seu espectador como a testemunha desprezível da sua incoerência, isto quer dizer da sua hipocrisia (“there’s no right or wrong way to interpret this film or anything that I do”, o que quer dizer muito simplesmente, por uma dedução de lógica bem elementar, que todas as maneiras de interpretar seus filmes estão certas).
Uma outra etapa do mesmo problema, em suma, que naquele ano mais esquisito do que turbulento de 2013 praticamente ninguém quis encarar como tal.
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Raymond Bellour anunciou que o Almanaque 2023 da Trafic será o último.
Em outras palavras, a Trafic vai acabar de vez.