Falou-se muito sobre cinefilia nesta plataforma recentemente.
Falou-se muito e nada de substancial.
Falou-se muito sobre a cinefilia que coloca e se coloca questões, que supostamente seria uma cinefilia mais de acordo com os tempos que correm.
(O primeiro questionamento/autoquestionamento já deveria surgir aí: uma cinefilia que coloca e se coloca questões é uma cinefilia de acordo com os tempos que correm? Passemos…)
Uma cinefilia que coloca e se coloca questões em oposição à que decreta o seu saber, e que por isso supostamente não se coloca questões.
Esta última, que decreta o seu saber e não se coloca questões, o perfil de uma cinefilia tirânica que é, portanto, indigna.
Quando o que mais se faz – e não só na cinefilia, e nem é necessário conhecer muito da sua história para constatá-lo –, o que mais se faz é colocar questões de maneira assertiva (nada de novo aí; isso se faz até mesmo no jornalismo de cobertura dos lançamentos em salas de cinema, que muitos ainda insistem em confundir com crítica de cinema). Isso quando não se coloca, às vezes em forma de texto, questões de maneira crítica (talvez daí venha a prática ensaística de reflexão escrita que tem por nome crítica). Ou ainda, mas com muito menos frequência, colocar-se críticas de maneira questionadora (o que é raro, sempre foi, e que curiosamente sequer foi cogitado como hipótese nos textos recentes que tanto versaram sobre a cinefilia nos dias que correm).
Nada muito complicado, exceto para os que já há algum tempo resolveram chafurdar no lamaçal das fórmulas binárias, das oposições maniqueístas, das fofocas de recreio.
Nos últimos dias, também, algumas manifestações valiosas daquilo que em outros tempos Jacques Rivette – um cinéfilo se já houve um – chamava de “a cabeça investigativa do cinema”.
Ou seja, algumas manifestações de uma cinefilia que (ainda) coloca e se coloca questões.
Não a propósito da cinefilia (para quê?), mas a propósito do cinema (que mais?).
Incluindo o cinema que ainda não foi inventariado, um cinema para o qual a cinefilia virou e ainda hoje vira as costas (Werner Nekes-Dore O., Pierre-Marie Goulet, Hans Scheugl, Gioli e De Bernardi, Reto Andrea Savoldelli), um cinema para o qual a cinefilia ainda não tem um nome (e que por isso permanece prenhe de possibilidades, para si e para os cinéfilos).
Ou, ainda, novas propostas de visão para o cinema que já foi integrado ao cânone cinéfilo, o cinema que já cai cheio de nomes nos colos dos novos espectadores; novas propostas de visão que não compartilham dessa vontade autoritária de nivelar tudo pelo denominador “Cheetos-com-Coca-Cola-para-o-cinéfilo-letrado” que atualmente é visado pelos arautos do ecletismo medianizado, do saber-de-menos como nova fantasia do Éden; propostas de visão que estremecem paradigmas calcificados, esses paradigmas que ainda podem e cada vez mais devem ser encarados de outro viés (uma visão de um dos filmes tardios do Allan Dwan que contorna os chavões do autor “obreiro”, “profissional”, “econômico”; um comentário sobre o valor relativo, que pode pender tanto para a ingenuidade quanto para a invenção, da liberdade no interior da criação artística).
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Em ordem de aparição nos últimos dias:
via Gabriel, a edição nº 1 da revista inglesa Enthusiasm, dedicada aos Straubs, com cerca de 30 páginas dos Straubs falando;
via Carla, o texto de uma leitura feita no dia 6 de junho a propósito do curta Contrato laboral con un árbol de tilo, no qual ela questiona a ideia muito difundida hoje da liberdade que garantiria “uma certa fidelidade ao real”;
via Sam, um texto sobre Slightly Scarlet que afasta o filme de Dwan do tipo de facilitação/simplificação retórica cada vez mais propagada nos meios cinéfilos.
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A visão de que a cinefilia só existe na medida em que permanece subordinada à devoção e à inocência, além de ser desmentida pelos textos linkados acima, dissimula (cada vez menos) uma vontade de aceitação e de hegemonia que tem mais a ver com a passividade do conformismo do que com iniciativa e solidariedade, para ficar em dois atributos imprescindíveis do que foi e do que fez a cinefilia até hoje (isso se o que existe hoje ainda pode ser chamado de cinefilia).
A cinefilia pôde ser, está sendo e pode vir a ser uma série de coisas muito diferentes umas das outras (por exemplo: isto, isto e isto). Achar que o que foi feito pelos cinéfilos há mais de 50 anos, com todos os erros e todos os agravantes que se acumularam ao longo de décadas de insistências fúteis e ausência obstinada de reavaliações (por exemplo, o desprezo completo pelos polos do filme experimental/de vanguarda que foi a água do banho da cinefilia recém-nascida nas exibições da Cinemateca de Langlois, do Ciné-Club du Quartier Latin e nas sessões do Objectif 49), achar que é isso o que deve ser renovado a cada nova geração de espectadores de cinema é a prova de uma cegueira que poderíamos creditar à tal vontade, aparentemente ferrenha, de devoção e inocência, se antes não fosse uma demonstração de malícia e melindre.
Sobre a malícia e o melindre, haverá outras ocasiões para examiná-los.
Sobre as cabeças investigativas do cinema hoje, a ocasião é esta.
E enquanto não surge outra, por ora fiquem com isto: