Começo a escrever este texto um dia após a notícia da morte de Jacques Rozier, três dias após rever Io e te, duas semanas após a primeira visão do último Bertolucci.
Antes de focar em Io e te, um breve comentário: parece-me que o essencial - e, talvez mais do que o essencial, o que permanece aproveitável, não reprovável - da obra de Bertolucci (La commare secca, Prima della rivoluzione, La via del petrolio, Partner, Agonia, Strategia del ragno, La tragedia di un uomo ridicolo, Io e te) se filia mais ao cinema de Rozier que ao de outras influências confessas do co-argumentista de C’era una volta il West (Godard, Pasolini, Rossellini, Ophuls, Glauber, Bergman, Coppola etc.). Escrevendo sobre La commare secca em 1980, Jean-Claude Biette, amigo de Bertolucci, diz que “o cinema de Bertolucci, nos seus melhores filmes, é fundado sobre uma percepção sentimental da realidade”, e em seguida indica que essa percepção estaria ligada a um sentimento do tempo que traz à plena luz, com sinceridade, fervor e inconsciência, “o simples desenrolar das horas, das estações, o sentimento do efêmero, os arrependimentos”.
Impossível não lembrar, a partir das palavras de Biette, tanto de Adieu Philippine e Du côté d’Orouët quanto de Prima della rivoluzione, dos planos iniciais e finais, dos passeios de bicicleta pela campanha de Parma em Strategia del ragno e, finalmente, de Io e te.
--------------------
Difícil descrever com exatidão uma emoção tão rica, que surge após tantos obstáculos, tantas contrariedades autoimpostas (muitas delas consequências da necessidade de Bertolucci sentir-se inserido e legitimado como “grande autor” no grande palco do cinema internacional, principalmente junto ao seu público e aos seus profissionais), uma emoção que acabou reprimida por um abuso de artifícios asfixiantes (o “donjuanismo de efeitos visuais e pose política” de que fala Biette a propósito do período da obra de Bertolucci que vai de Strategia del ragno a Novecento) e uma quase que completa sucessão de equívocos e disparates (entrecortada, de 1970 a 2003, pelo sucesso insólito da parceria de Bertolucci com Ugo Tognazzi em La tragedia di un uomo ridicolo, por alguns momentos de La luna, The Last Emperor, Besieged e talvez por alguma passagem de The Sheltering Sky e Stealing Beauty).
Essa emoção de que falo surge à plena luz nos instantes finais de Io e te. Com uma plenitude, uma evidência e uma nudez que Bertolucci jamais havia alcançado ou mesmo chegado perto de alcançar nos seus filmes anteriores.
Essa emoção, as formas nas quais ela se encarna (a começar pela largura do quadro CinemaScope, fundamental para a apreensão sensível na Roma de 2011 dessa “percepção sentimental da realidade” de que fala Biette), o percurso que ela delineia e deixa para trás no momento em que os protagonistas são finalmente impelidos para os seus destinos, novamente separados um do outro (mas não mais definitivamente separados), parece estar ligada ao que pode ser chamado desta vez, a única e última vez na obra de Bertolucci, de um emprego sereno, meditado e meditativo - em uma palavra, clássico - do “discurso subjetivo livre indireto” como definido por Pasolini no célebre ensaio “Il cinema di poesia”.
--------------------
Há cerca de seis ou sete anos escrevi o seguinte a propósito do cinema de Bertolucci: “percebo que gosto do Bertolucci principalmente quando ele filma as brumas e a chuvinha fina de Parma (como nas sequências à Perrault-Brault/Rossellini-do-India em que a câmera segue Gina/Adriana Asti a caminho da estação em Prima della rivoluzione), ou seja, quando ele escreve poesia na mesa que pertencia ao seu pai, em casa”. Mais tarde, há quatro anos, concluí um texto sobre La tragedia di un uomo ridicolo afirmando que Bertolucci “não fez algo nem mesmo remotamente tão bem-sucedido como este filme na sua carreira posterior”.
O erro que cometi nas duas ocasiões foi o de não ter visto Io e te, desencorajado pelo longo declínio do cinema de Bertolucci e pelo fiasco revoltante de The Dreamers em particular. Se já o tivesse visto quando fiz essas afirmações, teria me dado conta de duas coisas: 1) o que há de belo no cinema de Bertolucci não está necessariamente ligado nem ao regionalismo parmesão nem aos “arroubos de decadência cosmopolita” que representam a outra tendência a se destacar da sua obra (a qual comporta La commare secca, La via del petrolio, Partner, Agonia e, ainda que a cada dia eu tenha menos certeza se o filme é digno de destaque ou até mesmo de interesse, Il conformista); 2) La tragedia di un uomo ridicolo não foi o último grande filme de Bertolucci.
É a partir dessas duas constatações que pretendo escrever sobre Io e te e o modo como ele permite considerar a obra desigual, errática, muitas vezes desencorajante, frustrante tanto nos êxitos quando nos insucessos de Bertolucci sob uma outra luz.