Partindo daqui, bem como dos comentários do Lucas e do João Paulo na mesma postagem.
Por um cinema xamânico
Tal como a América, o cinema foi descoberto várias vezes: a mão de um homem das cavernas pressionada contra uma superfície levemente colorida e depois polvilhada com uma lufada de pó vermelho brilhante, a primeira reprodução mecânica de uma imagem; simuladores (demônios do ar semitransparentes, descritos por Hermes Trimegisto); sombras, pré e pós-platônicas; o Golem; o teatro de espelhos de Athanasius Kircher; bruma das Terras Altas que reproduz imagens gigantescas de transeuntes (evocadas por James Hoog em Confessions of a Justified Sinner); o céu acima do porto de Punto Arenas, no Chile, que reflete imagens invertidas de meio século atrás da cidade; o fantascópio de Robertson; as borboletas mágicas de Coney Island. Todos prefiguram os filmes. No início do século essas invenções convergiram no cinema, que imediatamente se desintegrou na indústria. Tal como a América, mais uma vez, o cinema desenvolveu-se simultaneamente em duas direções: como indústria e como utopia.
O cinema na sua forma industrial é um predador. É uma máquina de copiar o mundo visível e um livro para quem não sabe ler. A tradição iniciada pelos estoicos e prolongada por Leão Hebreu, Ibne Tufail e Calderón de la Barca descreve o mundo visível como o livro de Deus. Esse livro nos ensina uma ciência que nenhum outro livro pode ensinar. E nenhum outro livro está melhor escrito: para lê-lo basta um coração puro e uma cabeça vazia, uma espécie de docta ignorantia. O cinema é um reduto ideal para argumentos anticulturais. Que formação prévia, que formação cultural você precisa para entender um filme? Essas sempre passarão de nada mais do que obstáculos. O que me lembra os argumentos apresentados pelos defensores do analfabetismo na Idade de Ouro espanhola, como Filipe II, que criou um Conselho de Analfabetos (aparentemente para se beneficiar do conselho de inocentes, mas na verdade para garantir que não haveria judeus envolvidos). Ou a personagem de La lealtad contra la envidia, do dramaturgo Tirso de Molina, que afirma que o analfabetismo é prova de nobreza natural. Se o livro do mundo nos ensina tudo o que precisamos aprender, como pode ele deixar de tornar supérfluos todos os outros livros? O cinema, que nada mais é do que uma fotocópia do livro do mundo, torna desnecessários não apenas outros livros, mas talvez todas as outras artes.
Por outro lado, os utopistas viam o cinema como uma arte inteiramente nova, ou pelo menos uma disciplina única que exigia novas teorias, novas convenções, novos instrumentos para repensar o mundo visível. A relação entre os utopistas e a indústria tornou-se cada vez mais complexa. Hoje é difícil saber se a recente hiperindustrialização do cinema ajuda a utopia ao fornecer hardware barato, ou se os objetos utópicos (que a indústria chama de protótipos) na realidade avançam essa hiperindustrialização. Há vários anos tive uma ideia para um filme: uma competição entre Georges Méliès e os irmãos Lumière para produzir um filme d’A volta ao mundo em 80 dias para exibição na Exposição Mundial de 1900, em Paris. Como os promotores não conseguem decidir qual projeto apoiar, eles vão diretamente a Jules Verne e pedem sua opinião. Verne apoia ambos os projetos, então Méliès e os Lumière têm 80 dias cada um para fazer um filme. Os Lumière decidem passar 80 dias viajando pelo mundo com sua câmera, enquanto Méliès opta por permanecer em Paris e usar efeitos especiais para recriar a viagem em seu estúdio. Acredito que essa história apócrifa resume todos os problemas com os quais lidarei neste capítulo. No mínimo, ela ilustra a diferença entre naturalismo e artifício, entre uma abordagem artesanal e uma abordagem industrial, que as pessoas de outra época teriam expressado como a diferença entre ciência e bruxaria (em espanhol, capturar a alma de uma pessoa pela bruxaria é chamado hechizo – que significa “evento artificial” ou “feitiçaria”).
A história do cinema poderia ser interpretada como a acumulação contínua e o confronto constante (ou periódico) dessas duas tendências. Mas há um terceiro elemento que torna as coisas mais complicadas. Artistas e intelectuais apareceram no campo de batalha; artistas que procuraram aprofundar as suas disciplinas ou construir uma nova arte total, e intelectuais em busca de novos instrumentos de reflexão. A entrada de artistas e intelectuais no cinema provocou o nascimento do que se chama de primeira vanguarda: Delluc, Cocteau e Cavalcanti, mas também Murnau, Flaherty e Joris Ivens. Nas minhas prateleiras, eles estão em duas categorias. De um lado, o que chamo de “filiacionistas”, que tentaram seguir os fios do cinema até as suas origens e explicá-lo em termos de disciplinas existentes: os ideogramas chineses para Eisenstein, a sintaxe ocidental para Béla Balázs (que pensava que os movimentos de câmara eram verbos, as ângulos de câmera eram adjetivos e as personagens eram substantivos), fisiologia pavloviana para Kulechov. A outra categoria chamo de “aparicionistas”, com uma alusão à noção de Caro Bajora de que os carnavais podem ser explicados por suas ligações com a tradição ou por seu aparecimento repentino do nada; esses cineastas, incluindo Buñuel, Vigo e Vertov, poderiam muito bem ser chamados de mágicos. Eles privilegiaram a experimentação, a exploração, os poderes alquímicos e a vertigem (La Mettrie os teria chamado de “os sombrios”). Gosto de pensar que se Ernst Mayr fosse crítico de cinema ele teria classificado o primeiro grupo como filogenético e o segundo como ontogenético: o primeiro considera o cinema como um produto da evolução das artes plásticas, e o segundo como um fenômeno original e inesperado. E é verdade que embora o cinema tenha sido prefigurado e anunciado antecipadamente, o seu aparecimento ainda assim teve o efeito de uma explosão. Foi mais um ato terrorista do que uma consequência da crise das artes plásticas. A primeira vanguarda não durou muito e ficou social e geograficamente confinada à França, ou pelo menos à Europa. Envolveu não mais de duas mil pessoas. Mais tarde, outras vanguardas ganharam destaque, mas sempre de forma passageira, pois sempre foram absorvidas pela massa industrial. Na verdade, a história do cinema pode ser vista como uma série de pequenas revoluções decapitadas pela indústria, não apenas na América, mas também na Europa; e, paradoxalmente, as indústrias francesa, inglesa e italiana têm sido muito mais radicais na sua hostilidade à experimentação do que os americanos.
O cinema de vanguarda nunca encontrou um público e, curiosamente, foi criticado por intelectuais e artistas europeus que viam mais inovação em um filme de Buster Keaton do que em Ballet mécanique de Fernand Léger ou Entr'acte de René Clair. No geral, a recusa em admitir a experimentação foi justificada pela ambição de fazer “grande cultura popular”, ressuscitando a esperança de que um número máximo de pessoas poderia ser alcançado sem simplificar os meios de expressão. Foram os anos da música programática (Blitzstein, Copland, Kabalevsky), do teatro político (Piscator, Meyerhold) e da Bauhaus, uma época em que a experimentação tentava se tornar a seção de pesquisa e desenvolvimento da indústria. Então o cinema voltou ao seio da indústria e lá permaneceu até meados dos anos 1950. Naquela época, nos Estados Unidos, mas também na Europa, na América Latina e no Japão, surgiram pequenas unidades de produção que tentaram uma mudança radical na forma como os filmes eram feitos. O nascimento de ideologias de contracultura, juntamente com novas tecnologias como câmeras menores, som direto e películas mais sensíveis, tornaram essa mudança imaginável. O fechamento dos grandes estúdios e o surgimento da televisão completaram uma transformação que deixou o panorama audiovisual quase irreconhecível. A vanguarda havia voltado. O cinema mais uma vez se prestou à experimentação. Os métodos de produção foram revolucionados. Mas desta vez havia público, críticos e um sistema de distribuição funcionando. Durante cerca de 15 anos, o cinema de vanguarda ocupou o centro das atenções. Mas logo a publicidade fez com que a vanguarda parecesse quase banal. O cinema comercial copiou o desprendimento dos filmes experimentais, se não o desejo de chocar. No meio tempo, a retórica política encontrou o seu caminho até a vanguarda, forçando um impasse entre as pessoas que acreditavam numa nova cultura popular e aquelas que mergulharam de cabeça na experimentação exagerada. Muito em breve, os anos de excessos inebriantes e de arbitrariedade exuberante deram lugar a um período de normalização pela indústria, só que desta vez foram tomadas medidas para garantir que a reindustrialização seria irreversível. As táticas foram estas: um aumento catastrófico nos custos de produção; uma divisão rígida entre os vários ofícios cinematográficos; e controle rigoroso dos padrões de produção nas áreas de roteiro, duração, elenco e uso de cores. Em outras palavras, a noção de padrões e a noção de excelência foram deliberadamente confundidas. Na Europa, a criação de instituições de financiamento governamental, muitas vezes fornecendo financiamento a cem por cento para os filmes, desde que os padrões estabelecidos pelo Estado fossem cumpridos, serviu a mesma função. Em outras palavras, as prioridades tornaram-se políticas e de forma alguma artísticas.
Compreendo, é claro, que esta curta história do cinema parecerá simplificada demais, mesmo para aqueles que concordam com a minha análise. O termo “vanguarda” é obviamente demasiado grosseiro: várias vanguardas sempre sobreviveram, mas foram infectadas pela moralidade, foram neutralizadas, elas são, em suma, monótonas. No entanto, acredito que a minha análise permanece correta se os termos “industrial” e “vanguarda”, ou “comercial” e “artístico”, forem substituídos pela noção de produção em linha de montagem e trabalho artesanal. Meu ponto de vista não é imparcial. Estou interessado em filmes que, onde quer que ocorram, sejam, em certo sentido, únicos. Feitos à mão, caseiros, artesanais. A ambiguidade no cerne do problema é tão pesada que é incontrolável. Artesanal significa barato? Obviamente não. O artesanato, ou métier, está no centro do cinema industrial francês. A escola de cinema mais importante da França chama-se Fundação Europeia para o Ofício da Imagem e do Som, e o seu objetivo é dividir o ofício do cinema em partes componentes isoladas. Naturalmente, cada ofício tem a sua própria independência e as suas regras de interdependência. Todo o sistema é regido por um rígido sistema de padrões de produção. A lógica não é muito diferente daquela que ainda rege a guilda chamada Comrades of Duty (o que soa tão estranho em francês como em inglês): esses são os sucessores modernos dos homens que construíram as grandes catedrais. Filmes já foram comparados a catedrais mais de uma vez. Nesse sistema, cada componente de uma obra perfeita deve ser perfeito em si mesmo. Os componentes são, sem dúvida, produtos de artesanato, mas o todo é industrial - embora seja uma indústria governada não por preocupações comerciais, mas por preocupações políticas.
Vejo uma alternativa para esses dois tipos de cinema. Possui alguns elementos do artesanato antigo, por exemplo, uma abordagem prática ao celuloide ou ao vídeo e um espírito de inventividade. Mas o princípio fundamental nada tem a ver com artesanato, porque o objetivo é fazer objetos poéticos. As regras necessárias para compreender esses objetos poéticos são únicas para cada filme e devem ser redescobertas por cada espectador; elas não podem ser descritas a priori, nem a posteriori. Em suma, são filmes que não conseguem responder à pergunta: “Este filme é sobre o quê?” O grande crítico de cinema francês Serge Daney costumava distinguir esses filmes únicos dos produtos escravos da indústria invocando a diferença entre uma verdadeira viagem e um pacote turístico. Nas verdadeiras viagens o que importa são os acidentes mágicos, as descobertas, as maravilhas inexplicáveis e o tempo perdido. Num pacote turístico, o prazer vem da adesão sádica a um programa.